Acordou plena, sem nenhuma marca de travesseiro, com hálito fresco, cabelo penteado. Foi a primeira noite que não dormiu em cima de um braço, em posição fetal. Sentiu-se livre pra esparramar o corpo e a alma pela cama de casal quase vazia. Levantou e ouviu chuva. Nessa cidade o céu sente o que embaixo acontece. Logo entendeu que alguém muito chorava, logo entendeu que algum mundo escurecia perante uma vista que ontem era viva. Tomada por medo, ligou o chuveiro e provou a água com o pé esquerdo, como de costume. Enquanto isso, ouvia alguém lamuriando pelos cantos, nada muito nítido, mas as paredes da casa condenavam o azedume. Pegou a toalha mais macia, vestiu a roupa mais confortável e a meia de estimação, a vermelha, felpuda. Ainda assim, desgostosa. Tateando por entre os móveis, mal enxergava o que pisava...
Tropeçou no degrau da sala, bateu a cabeça na prateleira, quase derrubou o quadro pintado pela tia, com as cores mais vivas. Eu me lembro. Havia um rio, dos mais azuis, uma ponte, uma árvore no cantinho, sombras, nenhuma pessoa. Seguiu a voz, ainda baixa, cheiro de fumaça de cigarro, porre de whisky, tempero, alho, cominho, talvez até uma pitada de coentro, cachorro molhado, e lá no fundinho, tinta fresca. O quintal estava recém pintado. O pintor a fitava com olhos de malícia. Um charme. Tulu era seu apelido. Bem jovem ainda, beirava lá os vinte e cinco, um sorriso inigualável, e que braços! Deu um sorrisinho maldoso, como quem pensa: "Sorte que está chovendo, vai ter que pintar tudo de novo!". De boba não tinha nada.
Desceu as escadas, foi até o porão resgatar alguns livros antigos, sonetos, folhas de sulfite amareladas, é, pergaminhos soa mais fino, mas ninguém se importa. Não são nada além de velhas verdades sentidas. Encontrou uma boneca de porcelana, Ágata, era o seu nome. Nunca gostou de outra boneca sem ser a Raquel, por isso largou Ágata lá embaixo. A roupinha estava molhada, umidade, seria? Ora, claro que não, parece até gente grande que não consegue trabalhar com magia. Era xixi. Durante anos ela ficou jogada, sem ninguém pra lhe trocar. Apanhou-a com cautela. Parecia contente.
Subiu as escadas, a boneca nas mãos, tal qual uma caixa de ovos, ou uvas, pra não quebrar ou esmagar, tocava sua cabeça, alisava suas maçãs do rosto, pálidas, ideal seria levar a um médico, ele sim saberia o que fazer. Acreditava da forma mais fiel que era gripe. Quiçá uma pneumonia, daquelas que vem com tudo, estraçalhando as férias de julho, mamãe não vai deixar andar de bicicleta nem subir na goiabeira escondida do vizinho. Não, não, não. Nem adianta apelar. Ah! Tenho certeza de que ela vai acabar desobedecendo. Que criança em sã consciência não daria uma escapadela? Ninguém notaria. E se precisar, sirvo de cúmplice. Se alguém aparecer eu grito "panela de pressão". Sempre adorei esse código!
Caiu. Caiu em si. Viu que já era tarde pra ser quem sempre foi. Viu que o eu já tinha ido embora de casa, viu que ainda nem era hora do almoço.
Levantou. Levantou de um si que talvez não estivesse lá. Viu que já era tarde pra se derramar de dó. Viu que já bastava o tanto de ré que havia dado, viu que chuva fez-se sol.
Viu que tinha nas mãos todas as notas, uma boneca, um sonho, um pouco de força, músculo e coragem pra trazer de volta o que se foi. Viu caneta, vida, vaso de flor. Amor. É! Agora, corre!
Vou narrar o que hoje vivi.
Nenhum comentário:
Postar um comentário