sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Porteiro, porta, portaria, portão, porteira. Porta-treco, porta-lápis, porta-luva, porta-níquel, porta-malas. Porta-segredo.

Esse só eu tenho.

Porteiro, porta, portaria, porta, portão, porta, porteira. Porta treco porta lápis porta luva porta níquel porta malas.
Porta segredo porta.

Porta. Porte. Porto. Parto.

Incrível que tanto porta quanto parto são apelos.
Enquanto um esconde o outro doa. E então o que doa esconde e o que esconde doa.
Soa, soa cedo...
Incrível que tanto porte quando porto são apegos.
Enquanto um segura o outro pega. Então o que segura pega e o que pega segura.
Lá pelas duas da manhã.

Porteiro, porta, portaria, portão, porteira. Porta-treco, porta-lápis, porta-luva, porta-níquel, porta-malas. Porta-segredo.

Esse só eu tenho.

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Vou narrar o que hoje vi.


Acordou plena, sem nenhuma marca de travesseiro, com hálito fresco, cabelo penteado. Foi a primeira noite que não dormiu em cima de um braço, em posição fetal. Sentiu-se livre pra esparramar o corpo e a alma pela cama de casal quase vazia. Levantou e ouviu chuva. Nessa cidade o céu sente o que embaixo acontece. Logo entendeu que alguém muito chorava, logo entendeu que algum mundo escurecia perante uma vista que ontem era viva. Tomada por medo, ligou o chuveiro e provou a água com o pé esquerdo, como de costume. Enquanto isso, ouvia alguém lamuriando pelos cantos, nada muito nítido, mas as paredes da casa condenavam o azedume. Pegou a toalha mais macia, vestiu a roupa mais confortável e a meia de estimação, a vermelha, felpuda. Ainda assim, desgostosa. Tateando por entre os móveis, mal enxergava o que pisava...

Tropeçou no degrau da sala, bateu a cabeça na prateleira, quase derrubou o quadro pintado pela tia, com as cores mais vivas. Eu me lembro. Havia um rio, dos mais azuis, uma ponte, uma árvore no cantinho, sombras, nenhuma pessoa. Seguiu a voz, ainda baixa, cheiro de fumaça de cigarro, porre de whisky, tempero, alho, cominho, talvez até uma pitada de coentro, cachorro molhado, e lá no fundinho, tinta fresca. O quintal estava recém pintado. O pintor a fitava com olhos de malícia. Um charme. Tulu era seu apelido. Bem jovem ainda, beirava lá os vinte e cinco, um sorriso inigualável, e que braços! Deu um sorrisinho maldoso, como quem pensa: "Sorte que está chovendo, vai ter que pintar tudo de novo!". De boba não tinha nada.

Desceu as escadas, foi até o porão resgatar alguns livros antigos, sonetos, folhas de sulfite amareladas, é, pergaminhos soa mais fino, mas ninguém se importa. Não são nada além de velhas verdades sentidas. Encontrou uma boneca de porcelana, Ágata, era o seu nome. Nunca gostou de outra boneca sem ser a Raquel, por isso largou Ágata lá embaixo. A roupinha estava molhada, umidade, seria? Ora, claro que não, parece até gente grande que não consegue trabalhar com magia. Era xixi. Durante anos ela ficou jogada, sem ninguém pra lhe trocar. Apanhou-a com cautela. Parecia contente.

Subiu as escadas, a boneca nas mãos, tal qual uma caixa de ovos, ou uvas, pra não quebrar ou esmagar, tocava sua cabeça, alisava suas maçãs do rosto, pálidas, ideal seria levar a um médico, ele sim saberia o que fazer. Acreditava da forma mais fiel que era gripe. Quiçá uma pneumonia, daquelas que vem com tudo, estraçalhando as férias de julho, mamãe não vai deixar andar de bicicleta nem subir na goiabeira escondida do vizinho. Não, não, não. Nem adianta apelar. Ah! Tenho certeza de que ela vai acabar desobedecendo. Que criança em sã consciência não daria uma escapadela? Ninguém notaria. E se precisar, sirvo de cúmplice. Se alguém aparecer eu grito "panela de pressão". Sempre adorei esse código!

Caiu. Caiu em si. Viu que já era tarde pra ser quem sempre foi. Viu que o eu já tinha ido embora de casa, viu que ainda nem era hora do almoço.
Levantou. Levantou de um si que talvez não estivesse lá. Viu que já era tarde pra se derramar de dó. Viu que já bastava o tanto de ré que havia dado, viu que chuva fez-se sol.

Viu que tinha nas mãos todas as notas, uma boneca, um sonho, um pouco de força, músculo e coragem pra trazer de volta o que se foi. Viu caneta, vida, vaso de flor. Amor. É! Agora, corre!


Vou narrar o que hoje vivi.

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Em busca do meu fabuloso destino

Desde pequena me apaixono todos os dias. Padeiro, leiteiro, jornaleiro, inspetor, professor, encanador, colega de classe, de sorriso, de lua, padre, coroinha... O clero inteiro! Pai, filho, primo, irmão, o esquisito da estação de metrô, pelo mais cabeludo, pelo loirinho cheio de cachinhos, pelo moreno magrelo, nunca fortão, por um passarinho, por um cachorro, por uma palavra, por um olhar tímido, assustado, por cinco segundos e meio. Procuro manter o estoque cheio, até a boca, que é pra nunca faltar. Até hoje cavei meu poço, bem fundo, onde ora descanso, ora me escondo. Mas há meses não consigo sair de lá, de tanto fazer da caneta, colher. De tanto rezar deitada achando que estou de pé.
Sempre fui fechada. Sempre preferi ouvir, muitas vezes sem revidar, o tapa que o outro vinha a dar do lado esquerdo da face e do corpo. Sempre dizia não gostar sem ao menos experimentar. Foi assim com bacon, quiabo, jiló, fígado, asa de frango, palmito e cinema. Achava pobre sentar e vivenciar uma experiência onde já lhe deram os sons, as imagens, as respostas. As cores, as paisagens, os cheiros. Sim, cheiros! Cá entre nós, se cada milha da sua estrada não tem um cheiro no mínimo singular, você está seguindo pro lugar errado.
Penso que vi, durante todos os meus dias, uns vinte e sete filmes realmente bons. Bons, porém, dos vinte e sete, um me tocou. Bem lá no fundo. Não sei se a culpa é da depressão que resolveu dividir o aluguel comigo, se é da cabeça vazia, da oficina do diabo. Não sei se a culpa é do pé gelado, da maçã do rosto sem um toque, da boca sem sorriso, do café sem açúcar, da falta do doce, da dor no pescoço, do travesseiro baixo, do urso de pelúcia que há dias pede banho, do amor distante, do telefone que não toca, da tendinite do indicador direito. Da falta de peito, da sobra de leito...
Só sei que agora eu hei de acordar, e olha que antes eu nem torcia, mas pingou um gosto de saudade, essa noite. Saudade de levantar e pedir pra ver o sol. De seguir em frente sem medo da esquina, de não ligar pro calo do dedinho, de fazer carinho, de rondar as crianças da rua. De correr nua.
De me apaixonar de novo.



Todos os dias.